II COE - III Desafio
Texto vencedor por Marianne:

Isaura tem oitenta e sete anos felizes. As rugas sulcadas no rosto contam histórias que guarda intactas na memória. Isaura foi feliz na sua infância dourada, na universidade de medicina onde entrou para revolucionar uma época, no casamento arranjado pelos pais. Foi feliz grávida por cinco vezes e duplamente feliz nas treze vezes que se tornou avó. Foi incomparavelmente feliz nas cartas que trocou durante anos com Vasco, colega de faculdade partido para África na altura em que podiam ter casado. Não fora ele ter ido exercer para Moçambique e Isaura teria contrariado os pais, recusado casar com Almeno e sido seguramente feliz junto daquele amor que lhe trazia arritmias ao coração.
Hoje, oitenta e sete anos depois, deixou de ser dona do seu tempo, da sua vida, da sua história. Entrou-lhe pela porta o filho Manuel e pediu-lhe que preparasse uma mala com as suas roupas, disse-lhe que levasse dois ou três livros, que não se esquecesse dos seus santinhos. Isaura quis saber ao que iam, que urgência era aquela. Manuel, com a doçura que sempre o traduziu, explicou que Isaura não merece passar sozinha os dias que lhe restam. Nem ele nem os irmãos são capazes de tratar dela como merece, por isso escolheram juntos um lar. O melhor de todos, sublinha Manuel, a mãe vai gostar certamente.
Os filhos de Isaura julgam que aos oitenta e sete o prazo já terminou há muito e acham melhor dar à mãe uma suposta tranquilidade que ela não quer.
Isaura demora-se na escolha do que há-de levar. Arruma a mala sem grande cuidado, angustiada por sentir-se arrancada à sua vida. Manuel insiste que têm que ir, combinou com a directora do lar às quatro e já são três e meia. Isaura sabe que não voltará a ver esta casa, mas não pode partir sem a caixa onde guarda as centenas de cartas escritas por Vasco. Estão naqueles pedaços de papel todas as razões pelas quais Isaura foi feliz numa vida que não chegou a viver. Isaura relê as cartas todas as tardes e isso basta-lhe para sentir tudo novamente. Cinquenta anos depois, continua apaixonada pelo homem que nunca teve e sabe que tem nas cartas a sua riqueza maior. Carrega no peito a saudade cortante de quinze anos sem Vasco, falecido em Moçambique sem que se reencontrassem, mas tem naquelas cartas o sangue que obriga o seu coração a bater.