III COE - I Desafio

Texto vencedor por Marta:

Usava a mesma fita desde que se lembrava de existir. Ou desde que tinha cabelo. Recebia volta não volta outras fitas, outros adereços, mas ficavam esquecidos em cima da cómoda onde os poisava depois de abrir o embrulho. Aquela fita, a mesma que usava desde que se lembrava de existir, ou desde que tinha cabelo (pouco importa), pertencia-lhe tanto como o nariz adunco e as três sardas que se encavalitavam na bochecha esquerda, ali a meio caminho entre o olho e a boca. Aproveitava o Verão para a lavar. As noites eram quentes, a fita secava enquanto dormia – não chegava ao ponto de a levar para a cama – e de manhã lá estava ela, a segurar-lhe os cabelos que a genética fizera revoltos. Lembra-se do dia em que a mãe – ainda moravam juntas no sótão acanhado de duas assoalhadas – lha roubou. Era uma brincadeira. ‘Queria ver a tua reacção’ disse-lhe quando a viu em lágrimas. Nesse dia não saiu de casa. Sem a fita recusava-se. Tinha dez anos e andava na quarta classe. Fechou-se no quarto, o cabelo num desalinho em cima da almofada, e não foi à escola. A mãe não repetiu a graça. Com o passar dos anos deixou de ser conhecida pelo nome próprio, era a da fita vermelha em todos os locais por onde passava. Escolas, estágios, empregos sérios e não tão sérios. Como se a fita fossem uns óculos graduados ou uma gaguez. Como se a fita fosse o que a diferenciava dos demais, mais do que um QI elevado ou um talento para cantar. Fez, ao longo dos anos, várias tentativas para mudar a cor da fita. Pelo menos a cor, pensava. Nenhuma resultou. Até ao dia em que, numa viagem de comboio, pôs a cabeça de fora e a fita lhe voou. Tão depressa se soltou como a deixou de ver. Tão depressa chorou como desatou a rir, a rir incontrolavelmente. A rir como se dentro dela um interruptor tivesse sido carregado por uma entidade anónima que lhe vivesse nas estranhas. A liberdade deve ser isto, pensou. Um empurrãozinho para poder fazer aquilo que até aí não se conseguiu. A liberdade pode ser uma fita que voa e deixa os cabelos ao vento num intercidades apinhado de estudantes. Ou pode ser um campeonato, onde se decide escrever em desafios semanais. Um empurrãozinho, só isso. E depois a liberdade.


Texto vencedor por AnaLu:

Excelentíssimas senhoras e senhores, excelentíssimos membros do júri, excelentíssimos acusadores e acusados, excelentíssimos ouvintes, meretíssimo:
Fui intimado a subir a este palanque a fim de indicar em termos resumidos e certos as razões que me levaram à inscrição nesse concurso de escrita acerca do qual muito se tem especulado e nada se sabe. Acusam-me de envolvimento com gente suspeita, gente de leitura e de palavras, que as consome e também as produz, com zelo e dedicação tamanhas que tal modo de vida só pode esconder obscuro propósito. Assim me justificaram a investigação entretanto iniciada e na qual fomos tomados, eu e os restantes, como réus.
Nunca fui bom juiz em causa própria e das razões que me fundam pouco sei, mas comprometi-me com a verdade e por isso aqui estou, e a bem dizer não teria outro remédio aos olhos da lei.
Pois bem, a pouca eloquência de aqui aqui darei prova é precisamente aquela que me trouxe a escrever segundo desafios proposto por pessoas cuja identidade desconheço.
Pois que é nas palavras que me procuro, rebuscando sintaxe e gramática, sinónimos e antónimos, verbos e adjectivos, metáforas e aliterações, tal como um trolha brita a pedra que nos servirá de caminho. E qualquer pretexto me serve para tal empreendimento. Por vezes não sei se aquele que caminha sou eu ou um outro que entretanto nasce das frases e ideias que formulei e duvido se me encontro ou perco mais ainda. Nada há, porém, que consiga impedir esta sensação de me encontrar em casa a cada vez que me sento a escrever ou até quando, mesmo que não tenha papel ou caneta, me assalta uma remota memória ou intriga que objectivamente nunca vivi, mas que me faz jorrar palavras no cérebro.
Meus senhores: de mim, como vêdes, pouco sei, dessa gente que organiza a actividade menos ainda, mas sei que tenho de escrever. Sempre assim fiz e no entanto continuo a ignorar o que seja ser-se um escritor, tal como ignoro o que seja ser-se médico, agricultor ou contabilista. A escrita vive connosco como uma condição da qual o sujeito padecente não pretende curar-se. Decidi-me a participar neste evento seguindo o mesmo impulso com que escrevo - não importa o quê – como um animal que procurasse tornar-se pessoa a cada palavra, ou como uma cabra cega no escuro, na demanda da sua própria morada.