I COE - V Desafio

Texto vencedor por Dias Cães

Nascemos com poucos dias de diferença. Crescemos lado-a-lado na mesma rua em que o alcatrão quente de Verão nos marcou os joelhos das muitas brincadeiras que arriscávamos. As frutas, que colhíamos das árvores dos nossos quintais - e que roubávamos dos nossos vizinhos quando as nossas não eram doces - nunca discriminaram a boca por onde andavam. Acolhiam a minha e depois a tua, queimando-nos a saliva da castidade. Ainda brincávamos com o fogo quando, para nós, este ainda não se escrevia com a realidade. A nossa inocência não nos fazia ver, nem prever, que o que nos unia naquelas galhofas, com os sucos das frutas que nos lambuzavam as caras, ia muito além de brincadeiras de crianças. Aquelas coisas que sentíamos na barriga não eram maleitas de infantes nem excesso de açúcares. A barriga tremia porque nos aproximávamos dos anos em que nos poderíamos desfrutar em pleno. Sem preconceitos. Sem barreiras. De vez em quando um olhar trocado denunciava-nos. O toque de mãos acidental, deixava de o ser a cada transpirar de ansiedade. A cada inspiração ofegante de medo. Os nossos corpos pediam-se a cada passar de anos. As nossas bocas acabaram por se encontrar com a maturidade. Sabíamos que a idade nos iria libertar para viver esta grande paixão, que nasceu, crê-se hoje, ainda nas barrigas das nossas mães, quando se juntavam à conversa de braços estendidos sobre o muro.
Mas nunca as nossas mães se teriam rido e conversado sobre aquele muro se soubessem que um dia nos amaríamos tão inesperadamente. Se adivinhassem que o que trocávamos, além de brinquedos e risadas, eram também arritmias de coração. Nunca se teriam olhado sequer de frente. Fomos a vergonha das nossas mães. O nosso amor foi o maior terror das suas vidas. O nosso amor foi a tua e a minha salvação.
Sem ti não saberia o que é o calor de uns pés debaixo dos lençóis. Nem o cheiro do pão quente de manhã, servido na cama. Não saberia a que sabe um beijo de madrugada enquanto fazemos amor bem devagar. Olhos nos olhos. De sorriso nos lábios. De pele suada.
Não saberia nada disso porque apenas tu poderias compreender o que surpreende uma mulher. O que é o desejo de uma mulher. Como se ama o corpo de outra mulher. Apenas tu, minha adorável mulher, poderias saber como me amar por teres um corpo igual ao meu.


Texto vencedor por Me - OMQ

Esta é uma história de amor das que nunca chegou a acontecer.
O porquê estará no crer de cada um.
Vejamos.
Ele, músico, musicava. Ela, atrasada. Não sabia para o que ia, não se apressou (se soubesse, ter-se-ia apressado ou atrasado mais?). Chegou lá e, de início, nem ouviu o que os outros ouviam. Quase violentamente, deu-se conta de voz com sotaque estrangeiro àquelas bandas que lhe deixou os sentidos em sentido. Em alerta, virou a cabeça tão rapidamente que nem chicote esfomeado por montada preguiçosa. Dá-se conquista da visão. Moreno, de sorriso generoso e mãos bonitas. O olfacto, farejando o ar e enchendo-a de certezas inexplicavelmente simples, conquistado. Estava entregue.
Andaram numa troca de amigáveis mensagens pelo facebook (onde mais?) durante uns tempos até ela saber que iria actuar perto dali, e, num rasgo de puro desafio ao destino, foi-se apresentar em tal noite sem se apresentar, dizendo-lhe apenas que tinha 10 segundos para saber quem era. E ele soube. Iria ter com ela depois. Ela esperou. Ele foi. E quando começaram a conversar, ele fugiu. Olhou-a nos olhos, deu um passo em frente, encarnou ar de medo, declarou que tinha de se ir embora. Porquê?, perguntou. Não posso, ouviu. E ele fugiu dela. E ela sorriu, de coração cheio e sentidos em festa por ter estado correcta no sentido que levara.
Mas ele tinha namorada e ela hipótese nenhuma contra aquele coração fiel.
Uns tempos depois, em concerto de rua com sessenta mil pessoas na assistência, deu de caras com ele. Logo ele. Foda-se, pensou. Deu passo atrás. Ele pareceu ofendido. O sorriso rasgado foi-se. Pediu-lhe dois beijos. Ela anuiu. Olhou-a com ar de súplica. Ela continuou caminho atirando um “Ya” para o ar. Ya? Ya.
Numa erupção de excesso de confiança e mais burrice, enviou e-mail longo e profundo informando-o de que, mesmo não sabendo o quê, achava que havia ali algo para querer (e crer). Scribendi nullus finis. Não houve resposta. Semper fidelis.
Encontraram-se mais duas ou três vezes depois deste episódio. Olhares de quem guarda segredo. Nada mais.
Esta história de amor, como tantas outras, podia ter sido mas não foi. Ainda, crê-se.
Mas ela sabe. Soube-o no momento em que o viu. Soube-o no momento em que ele lhe fugiu.
Há momentos que valem o resto da história. No amor, se assim não for, não vale a pena.
Haja histórias para contar.