I COE - IV Desafio

Texto vencedor por Dias Cães

5152 dias.  Há 5152 dias que não via a luz do dia. Dormia quando os olhos se fechavam e acordava quando o ar lhe faltava. Os olhos, cegos pela luz que não tinham, inibiam-lhe o caminho das mãos. Escrevinhava com as unhas grandes pelas paredes, mesmo no desencaminho das vistas. Comia coisas que sentia vivas entre os seus pés e os seus cabelos. Bebia a água fétida que escorria pelas paredes. As suas entranhas travavam-lhe o alimento à boca mas empurravam-lhe as mãos contra as paredes. Escrevia cega. Escrevia desenfreadamente como se visse. Escrevia como se tivesse as mãos de fada de outrora.
Para ali fora empurrada há 5152 dias para escrever uma história única e, sem saber, assim o havia de cumprir. A história escrevia-se a cada segundo. A sua vida também.

A vibração imensa das paredes aterrorizaram-na. Não ouvia qualquer ruído há anos e por isso rendeu-se ao medo. Uma luz invadiu-lhe num ápice os olhos que acreditava cegos. Figuras de homens apossaram-se do espaço e entoaram palavras confusas. Pareciam felizes mas incrédulos. Quiseram tocar-lhe e ao mesmo tempo ceder ao espanto. Os focos de luz, que apontavam sobre as paredes verdes e negras, revelavam agora uma dura realidade. A escritora que todos procuravam nunca se perdeu. Esteve sempre ali, naquelas paredes escritas à unha. Morreu apenas a mulher escritora de preceitos rigorosos. Nasceu a nefelibata. Nasceu o que aquele antro conseguiu parir: a maior obra-prima que o mundo havia de descobrir.

A adorável jovem recebia os aplausos de todos os presentes no auditório. Todos lhe reconheciam o talento e não estavam ali por outro motivo, que não fosse, dizer-lhe o quanto as suas palavras inspiravam. Apesar de jovem, apenas respirava prosa intensa e bem estruturada. De bom cálculo gramatical e sem desalinho a apontar. O rigor pautava-lhe as palavras.
Talvez por tal cobiça ter sido tão propagandeada, a sua história pessoal foi travada por um episódio demasiado real. Provar-se-ia, anos mais tarde, que havia quem não soubesse distinguir a ficção dos livros da realidade da vida. Pois que houve, quem quisesse escrever história com as suas próprias mãos, roubando anos a uma vida que tão bem escrevia.
Há 5152 dias, a escritora mais promissora da década, foi aprisionada por um homem que a queria escrevente apenas para si. Há 5152 dias atrás conheceu a cave nojenta onde havia de escrever a sua obra-prima.