I COE - III Desafio

Texto vencedor por Dias Cães

Ao nascer-do-sol do passado dia 18, faleceu a filha de Manuel e Maria, a mais nova de seus dois filhos.
Anuncia-se, pois, que quis o destino roubar-lhe o sopro,  precisamente no dia em que festejava o seu 31º aniversário, sem que, sequer, chegasse à hora de o completar. No dia de maior festejo, celebrou-se também o dia de maior dor. Morreu a rapariga mais promissora da terra. Morreu a filha de Manuel e Maria.
Os seus pais e irmão, que muito a estimavam, lamentam agora os dois acontecimentos que se juntaram num só dia: Primeiro, que tivesse nascido e, agora, que tivesse padecido. Sabe-se hoje que, se não tivesse nascido, o vexame que a acompanhou à morte nunca teria sucedido.
Num percurso de vida que se previa auspicioso, esta jovem finou-se sob uma história fétida que perdurará nas memórias que teremos dela. No dia que comemorava o seu aniversário, quis o destino que se casasse também, com um dos filhos mais queridos da terra. Bom moço, que há-de merecer melhor no futuro, assim Deus o queira. E no mesmo dia, ainda antes de se casar, acabou por morrer nos braços de outro homem. O maior canastrão, que a soube desencaminhar do percurso cândido que a esperava.
Ninguém, em tempo algum, haveria de prever que esta boa-filha teria um final tão infeliz e obscuro, que tão poucos quererão recordar.
Morreu vestida de noiva no seu aniversário. Não chegou a casar. Nunca no seu útero se criaram fetos, e não chegou a ser amada na noite de núpcias pelo seu marido.
Morreu seca, deitada numa cama que não era a sua mas onde Deus quis que se fizesse justiça. Morreu de corpo consumido e de sorriso nos lábios mas sem a castidade que se esperava de uma noiva, de uma filha de pais dignos, pessoas de rosto hirto e brioso. Morreu a filha de Manuel e Maria, da maneira menos católica que estas palavras agora mereceriam.
Pela vida que levou e pela infeliz morte que teve, lembramos hoje, esta irmã que partiu para junto do senhor… De um qualquer outro senhor, que não o do céu, porque Esse, com certeza, não a irá receber.
Não haverá missa para encomendar o seu corpo, por não haver destinatário que a queira acolher, mas a sua família agradece a todos quanto a souberam amar em vida e lhe queiram agora asilar as cinzas.


Texto vencedor por Miranda Lopes

Foi encontrada em sua casa morta e em avançado estado de decomposição uma mulher de meia-idade, casada e sem filhos.
O mal havia sido feito há muito, o putativo criminoso trouxera-o dentro dele e introduziu-o na mulher, deixando-a dobrada de dores como sucedia sempre que a possuía após a ingestão de excessos de copos em frequentes saídas com os amigos. Ela tinha confidenciado com as vizinhas que desta última vez o vergonhoso ultraje tinha sido diferente, porque nem as abluções que costumava fazer a aliviaram. A vizinhança toda sabia que ele frequentava mulheres da vida, bastava olhar para ele nessas noites de rebaldaria, o cabelo em desalinho, a cheirar a perfume barato e com a camisa traçada de batom cor-de-rosa.
Mas era uma estranha forma de morrer, assim interiormente queimada, as entranhas revoltadas, torcendo-se em cólicas tão aflitivas que passado uns tempos nem conseguia sair da cama. Nessa altura já o homem evitava ir a casa, devido ao cheiro nauseabundo que dela se desprendia como se estivesse a apodrecer por dentro.
Até ver não foram encontradas provas que o indiciem apenas foram encontradas em sacos de lixo à porta de sua casa latas de comida fora do prazo. A mulher morreu envenenada, espumando pela boca num esgar de sofrimento extremo e inusitado. Ele continua a insistir que não teve nada a ver com o caso, que já nem a casa ia.
O colectivo de juízes decidiu aguardar por mais provas uma vez que segundo o acusado teria sido ela que se tinha suicidado, incapaz de gerir uma vida de dor e mágoa, teoria reforçada por uma das vizinhas que mantinha que a mulher tinha ingerido a comida estragada na vã tentativa de exterminar os vermes que germinavam na fornaça do seu ventre.
Os vizinhos choraram a sua morte, indiferentes ao presumível homicídio, ou suicídio, dava igual porque o que lhes interessava era a paz a que ela se votara, bem-aventurada nessa hora última em que entregara a alma ao criador. Eles sabiam que só havia duas maneiras da mulher escapar a tão porcino malfeitor, matá-lo ou morrer. Não deixa de ser irónico que neste pesaroso final ele tenha herdado todos os bens da vítima, que nunca teve tempo nem saúde para os gozar. Paz à sua alma! Que encontre na imensidão do além aquilo que os bens materiais e a vida madrasta nunca lhe concederam!