II COE - I Desafio
Texto vencedor por Marianne:

A porta abria-se devagar, não entrava luz. Tinhas sempre cuidado para que eu não desse por ti. Sentavas-te aos pés da minha cama, fazias-me festas no cabelo. Eu não chegava a adormecer profundamente porque sabia que havias de ir ao pé de mim. Fazias o mesmo todas as noites. Mal ouvia a tua respiração e tentava que não ouvisses a minha. Entrelaçavas os dedos no meu cabelo, passavas-me a mão na testa, nas bochechas e nos lábios. Ouvia o roçagar do tecido. Punhas a mão dentro das calças do pijama e tocavas-te enquanto, com a outra mão, me afagavas o cabelo. Sentia-me encolher como um caracol na casca, mas não me mexia. Depois ajoelhavas-te à minha frente, duro, enorme, continuavas a tocar-te e chegavas a ponta do pénis aos meus lábios. Eu fingia dormir. Puxavas-me o queixo para baixo e abrias-me a boca, que logo preenchias com aquela parte de ti. Agarravas-me o cabelo com mais força e fazias tu os movimentos de que precisavas para gostar daquele momento, que repetias todos os dias. Quando terminavas limpavas o que houvesse a limpar, davas-me um beijo na testa, ajeitavas-me os lençóis e dizias baixinho “até amanhã”. Eu encharcava a almofada com lágrimas que não sabia porque me corriam pela cara.
De manhã acordavas-me com beijos, atiravas-me ao ar, tratavas de mim. Dizias que me amavas e partias feliz.
Eu não entendia. Aos cinco anos não se entendem rituais que não nos explicam. Não se sabe que um pai não pode fazer isto a um filho. Não se sabe que é errado, mas sente-se que algo não bate certo. Eu não sabia. Odiava cada momento desde que me deitava até que acordava na manhã seguinte, mas não sabia porquê. Cresci. Comecei a entender. E a odiar tudo em ti. Foste o pai que me violou. Que me obrigou a fazer coisas que não percebia mas que agora sei quão doentias são. Odeio que pensasses que não me fazias mal nenhum. Odeio que me usasses para teu prazer. Eu, que era teu filho e tinha apenas cinco anos, acolhia na boca toda a tua insanidade, noite após noite. Odeio que vivas. Que sejas meu pai. Odeio que tenhas pensado que podias usar-me para ter o prazer que não conseguias em mais lado nenhum. Foi por isso que hoje, 20 de Março de 2012, te matei com um tiro no coração.
I COE - VI Desafio

Texto vencedor por Lénia Rufino (Marianne)

Tinha treze anos e não sabia muita coisa. Mas sabia que adorava palavras, histórias, vidas transformadas em textos, textos convertidos em livros, livros metamorfoseados em horas de prazer. Um dia, com as entranhas reviradas pelo Massacre de Santa Cruz, em Díli, escreveu um poema. Depois, milhares de poemas. Não é eufemismo – foram milhares de poemas escritos em dezenas de cadernos que a acompanhavam para todo o lado. Escrevia como respirava. Lia mais ainda. E percebeu rapidamente que, se o mundo corresse de feição, a sua vida seria passada a escrever. Mais do que um gosto, uma paixão. Talvez fosse o seu único talento. Era na escrita que se tornava humana. Era nas palavras que matava a solidão. Escrevia porque precisava de escrever para viver. E escrevia porque só escrevendo se sentia feliz.
Cresceu e nunca deixou de escrever. Foi guardando palavras em gavetas, como quem guarda tesouros que um dia há-de revelar.
Um dia, desafiada como quem se encontra perante um abismo, inscreveu-se num concurso de escrita. Pensou que, no limite, lhe serviria para se exercitar, para escrever sob as ordens de outra pessoa, sem estar apenas à mercê do que a imaginação lhe ditasse na altura. Escreveu. Sorriu perante os textos que lhe nasceram nas mãos, escreveu e apagou, até ter tudo conforme queria. Esperou ansiosa pelos resultados dos desafios e foi pensando que não estava a sair-se mal.
Surpreendeu-se com o final do concurso. Venceu e não esperava. Mentira: queria e esperava vencer. Porque queria escrever e sabia que este era um degrau que poderia levá-la longe. E levou. Continuou a escrever, editou livros, mereceu prémios mas o que a fez sentir que cumprira a sua missão foi chegar aos sessenta e muitos anos e perceber que tinha imensos leitores fiéis, que davam sentido a esta vida feita de palavras e histórias vivas.
É este o seu legado: as palavras, as histórias, as personagens a que deu vida. Criou mundos para lá do mundo, gerou conflitos que aplacou com inteligência, matou pessoas e fez nascer heróis, mudou o curso da história, destruiu civilizações, deu voz a seres inanimados, trouxe às palavras o bater do coração de todos os que só existem na sua imaginação.
Fez-se escritora e cumpriu-se enquanto pessoa. Orgulha-se de que o primeiro concurso literário que venceu tenha sido o I Concurso Online de Escrita.
I COE - V Desafio

Texto vencedor por Dias Cães

Nascemos com poucos dias de diferença. Crescemos lado-a-lado na mesma rua em que o alcatrão quente de Verão nos marcou os joelhos das muitas brincadeiras que arriscávamos. As frutas, que colhíamos das árvores dos nossos quintais - e que roubávamos dos nossos vizinhos quando as nossas não eram doces - nunca discriminaram a boca por onde andavam. Acolhiam a minha e depois a tua, queimando-nos a saliva da castidade. Ainda brincávamos com o fogo quando, para nós, este ainda não se escrevia com a realidade. A nossa inocência não nos fazia ver, nem prever, que o que nos unia naquelas galhofas, com os sucos das frutas que nos lambuzavam as caras, ia muito além de brincadeiras de crianças. Aquelas coisas que sentíamos na barriga não eram maleitas de infantes nem excesso de açúcares. A barriga tremia porque nos aproximávamos dos anos em que nos poderíamos desfrutar em pleno. Sem preconceitos. Sem barreiras. De vez em quando um olhar trocado denunciava-nos. O toque de mãos acidental, deixava de o ser a cada transpirar de ansiedade. A cada inspiração ofegante de medo. Os nossos corpos pediam-se a cada passar de anos. As nossas bocas acabaram por se encontrar com a maturidade. Sabíamos que a idade nos iria libertar para viver esta grande paixão, que nasceu, crê-se hoje, ainda nas barrigas das nossas mães, quando se juntavam à conversa de braços estendidos sobre o muro.
Mas nunca as nossas mães se teriam rido e conversado sobre aquele muro se soubessem que um dia nos amaríamos tão inesperadamente. Se adivinhassem que o que trocávamos, além de brinquedos e risadas, eram também arritmias de coração. Nunca se teriam olhado sequer de frente. Fomos a vergonha das nossas mães. O nosso amor foi o maior terror das suas vidas. O nosso amor foi a tua e a minha salvação.
Sem ti não saberia o que é o calor de uns pés debaixo dos lençóis. Nem o cheiro do pão quente de manhã, servido na cama. Não saberia a que sabe um beijo de madrugada enquanto fazemos amor bem devagar. Olhos nos olhos. De sorriso nos lábios. De pele suada.
Não saberia nada disso porque apenas tu poderias compreender o que surpreende uma mulher. O que é o desejo de uma mulher. Como se ama o corpo de outra mulher. Apenas tu, minha adorável mulher, poderias saber como me amar por teres um corpo igual ao meu.


Texto vencedor por Me - OMQ

Esta é uma história de amor das que nunca chegou a acontecer.
O porquê estará no crer de cada um.
Vejamos.
Ele, músico, musicava. Ela, atrasada. Não sabia para o que ia, não se apressou (se soubesse, ter-se-ia apressado ou atrasado mais?). Chegou lá e, de início, nem ouviu o que os outros ouviam. Quase violentamente, deu-se conta de voz com sotaque estrangeiro àquelas bandas que lhe deixou os sentidos em sentido. Em alerta, virou a cabeça tão rapidamente que nem chicote esfomeado por montada preguiçosa. Dá-se conquista da visão. Moreno, de sorriso generoso e mãos bonitas. O olfacto, farejando o ar e enchendo-a de certezas inexplicavelmente simples, conquistado. Estava entregue.
Andaram numa troca de amigáveis mensagens pelo facebook (onde mais?) durante uns tempos até ela saber que iria actuar perto dali, e, num rasgo de puro desafio ao destino, foi-se apresentar em tal noite sem se apresentar, dizendo-lhe apenas que tinha 10 segundos para saber quem era. E ele soube. Iria ter com ela depois. Ela esperou. Ele foi. E quando começaram a conversar, ele fugiu. Olhou-a nos olhos, deu um passo em frente, encarnou ar de medo, declarou que tinha de se ir embora. Porquê?, perguntou. Não posso, ouviu. E ele fugiu dela. E ela sorriu, de coração cheio e sentidos em festa por ter estado correcta no sentido que levara.
Mas ele tinha namorada e ela hipótese nenhuma contra aquele coração fiel.
Uns tempos depois, em concerto de rua com sessenta mil pessoas na assistência, deu de caras com ele. Logo ele. Foda-se, pensou. Deu passo atrás. Ele pareceu ofendido. O sorriso rasgado foi-se. Pediu-lhe dois beijos. Ela anuiu. Olhou-a com ar de súplica. Ela continuou caminho atirando um “Ya” para o ar. Ya? Ya.
Numa erupção de excesso de confiança e mais burrice, enviou e-mail longo e profundo informando-o de que, mesmo não sabendo o quê, achava que havia ali algo para querer (e crer). Scribendi nullus finis. Não houve resposta. Semper fidelis.
Encontraram-se mais duas ou três vezes depois deste episódio. Olhares de quem guarda segredo. Nada mais.
Esta história de amor, como tantas outras, podia ter sido mas não foi. Ainda, crê-se.
Mas ela sabe. Soube-o no momento em que o viu. Soube-o no momento em que ele lhe fugiu.
Há momentos que valem o resto da história. No amor, se assim não for, não vale a pena.
Haja histórias para contar.
I COE - IV Desafio

Texto vencedor por Dias Cães

5152 dias.  Há 5152 dias que não via a luz do dia. Dormia quando os olhos se fechavam e acordava quando o ar lhe faltava. Os olhos, cegos pela luz que não tinham, inibiam-lhe o caminho das mãos. Escrevinhava com as unhas grandes pelas paredes, mesmo no desencaminho das vistas. Comia coisas que sentia vivas entre os seus pés e os seus cabelos. Bebia a água fétida que escorria pelas paredes. As suas entranhas travavam-lhe o alimento à boca mas empurravam-lhe as mãos contra as paredes. Escrevia cega. Escrevia desenfreadamente como se visse. Escrevia como se tivesse as mãos de fada de outrora.
Para ali fora empurrada há 5152 dias para escrever uma história única e, sem saber, assim o havia de cumprir. A história escrevia-se a cada segundo. A sua vida também.

A vibração imensa das paredes aterrorizaram-na. Não ouvia qualquer ruído há anos e por isso rendeu-se ao medo. Uma luz invadiu-lhe num ápice os olhos que acreditava cegos. Figuras de homens apossaram-se do espaço e entoaram palavras confusas. Pareciam felizes mas incrédulos. Quiseram tocar-lhe e ao mesmo tempo ceder ao espanto. Os focos de luz, que apontavam sobre as paredes verdes e negras, revelavam agora uma dura realidade. A escritora que todos procuravam nunca se perdeu. Esteve sempre ali, naquelas paredes escritas à unha. Morreu apenas a mulher escritora de preceitos rigorosos. Nasceu a nefelibata. Nasceu o que aquele antro conseguiu parir: a maior obra-prima que o mundo havia de descobrir.

A adorável jovem recebia os aplausos de todos os presentes no auditório. Todos lhe reconheciam o talento e não estavam ali por outro motivo, que não fosse, dizer-lhe o quanto as suas palavras inspiravam. Apesar de jovem, apenas respirava prosa intensa e bem estruturada. De bom cálculo gramatical e sem desalinho a apontar. O rigor pautava-lhe as palavras.
Talvez por tal cobiça ter sido tão propagandeada, a sua história pessoal foi travada por um episódio demasiado real. Provar-se-ia, anos mais tarde, que havia quem não soubesse distinguir a ficção dos livros da realidade da vida. Pois que houve, quem quisesse escrever história com as suas próprias mãos, roubando anos a uma vida que tão bem escrevia.
Há 5152 dias, a escritora mais promissora da década, foi aprisionada por um homem que a queria escrevente apenas para si. Há 5152 dias atrás conheceu a cave nojenta onde havia de escrever a sua obra-prima.
I COE - III Desafio

Texto vencedor por Dias Cães

Ao nascer-do-sol do passado dia 18, faleceu a filha de Manuel e Maria, a mais nova de seus dois filhos.
Anuncia-se, pois, que quis o destino roubar-lhe o sopro,  precisamente no dia em que festejava o seu 31º aniversário, sem que, sequer, chegasse à hora de o completar. No dia de maior festejo, celebrou-se também o dia de maior dor. Morreu a rapariga mais promissora da terra. Morreu a filha de Manuel e Maria.
Os seus pais e irmão, que muito a estimavam, lamentam agora os dois acontecimentos que se juntaram num só dia: Primeiro, que tivesse nascido e, agora, que tivesse padecido. Sabe-se hoje que, se não tivesse nascido, o vexame que a acompanhou à morte nunca teria sucedido.
Num percurso de vida que se previa auspicioso, esta jovem finou-se sob uma história fétida que perdurará nas memórias que teremos dela. No dia que comemorava o seu aniversário, quis o destino que se casasse também, com um dos filhos mais queridos da terra. Bom moço, que há-de merecer melhor no futuro, assim Deus o queira. E no mesmo dia, ainda antes de se casar, acabou por morrer nos braços de outro homem. O maior canastrão, que a soube desencaminhar do percurso cândido que a esperava.
Ninguém, em tempo algum, haveria de prever que esta boa-filha teria um final tão infeliz e obscuro, que tão poucos quererão recordar.
Morreu vestida de noiva no seu aniversário. Não chegou a casar. Nunca no seu útero se criaram fetos, e não chegou a ser amada na noite de núpcias pelo seu marido.
Morreu seca, deitada numa cama que não era a sua mas onde Deus quis que se fizesse justiça. Morreu de corpo consumido e de sorriso nos lábios mas sem a castidade que se esperava de uma noiva, de uma filha de pais dignos, pessoas de rosto hirto e brioso. Morreu a filha de Manuel e Maria, da maneira menos católica que estas palavras agora mereceriam.
Pela vida que levou e pela infeliz morte que teve, lembramos hoje, esta irmã que partiu para junto do senhor… De um qualquer outro senhor, que não o do céu, porque Esse, com certeza, não a irá receber.
Não haverá missa para encomendar o seu corpo, por não haver destinatário que a queira acolher, mas a sua família agradece a todos quanto a souberam amar em vida e lhe queiram agora asilar as cinzas.


Texto vencedor por Miranda Lopes

Foi encontrada em sua casa morta e em avançado estado de decomposição uma mulher de meia-idade, casada e sem filhos.
O mal havia sido feito há muito, o putativo criminoso trouxera-o dentro dele e introduziu-o na mulher, deixando-a dobrada de dores como sucedia sempre que a possuía após a ingestão de excessos de copos em frequentes saídas com os amigos. Ela tinha confidenciado com as vizinhas que desta última vez o vergonhoso ultraje tinha sido diferente, porque nem as abluções que costumava fazer a aliviaram. A vizinhança toda sabia que ele frequentava mulheres da vida, bastava olhar para ele nessas noites de rebaldaria, o cabelo em desalinho, a cheirar a perfume barato e com a camisa traçada de batom cor-de-rosa.
Mas era uma estranha forma de morrer, assim interiormente queimada, as entranhas revoltadas, torcendo-se em cólicas tão aflitivas que passado uns tempos nem conseguia sair da cama. Nessa altura já o homem evitava ir a casa, devido ao cheiro nauseabundo que dela se desprendia como se estivesse a apodrecer por dentro.
Até ver não foram encontradas provas que o indiciem apenas foram encontradas em sacos de lixo à porta de sua casa latas de comida fora do prazo. A mulher morreu envenenada, espumando pela boca num esgar de sofrimento extremo e inusitado. Ele continua a insistir que não teve nada a ver com o caso, que já nem a casa ia.
O colectivo de juízes decidiu aguardar por mais provas uma vez que segundo o acusado teria sido ela que se tinha suicidado, incapaz de gerir uma vida de dor e mágoa, teoria reforçada por uma das vizinhas que mantinha que a mulher tinha ingerido a comida estragada na vã tentativa de exterminar os vermes que germinavam na fornaça do seu ventre.
Os vizinhos choraram a sua morte, indiferentes ao presumível homicídio, ou suicídio, dava igual porque o que lhes interessava era a paz a que ela se votara, bem-aventurada nessa hora última em que entregara a alma ao criador. Eles sabiam que só havia duas maneiras da mulher escapar a tão porcino malfeitor, matá-lo ou morrer. Não deixa de ser irónico que neste pesaroso final ele tenha herdado todos os bens da vítima, que nunca teve tempo nem saúde para os gozar. Paz à sua alma! Que encontre na imensidão do além aquilo que os bens materiais e a vida madrasta nunca lhe concederam!
I COE - II Desafio

Texto vencedor por Lénia Rufino (Marianne)

Heartbreak Hotel – olho de relance para o neon que identifica o hotel e penso que não podia ser mais adequado. Nunca tinha reparado nele e passo dezenas de vezes nesta rua velha. Entro e peço um quarto qualquer, as mãos tremem-me do excesso de tabaco, as olheiras marcam-me o rosto onde lágrimas desceram, abruptas. Na receção, um indiano de meia idade, longe de ter um ar saudável, olha-me se soslaio mas sem interesse. Atrás de si, uma grelha repleta de gavetas alberga as chaves dos quartos desocupados. Pega numa sem atenção e manda-me subir as escadas ao fundo, à esquerda. Subo. À medida que os degraus ficam para trás adensa-se um cheiro indefinido, uma mistura de suor com bolor, que mal me deixa respirar. As lágrimas regressam-me aos olhos e eu não as impeço de descer. Abro a porta com a chave velha e atiro-me sem cuidado para cima da cama. Fico horas a olhar o teto despido, manchas de humidade e vestígios de tinta. Lá fora, uma chuva incerta cai com força nas janelas e molha o parapeito por dentro. Não sei que horas são. Sei que precisava desta concha fechada, deste tempo de silêncio e refúgio. Sei que te perdi. Agarrei-te com a vida que me pedia um futuro e traí-te sem vergonha. Seduziu-me a força de uma vida que não era mim nem nunca poderia ser. Seduziram-me olhos demoníacos que me engoliram a cada olhar. Seduziram-me aquelas mãos frias, de dedos ágeis e esguios, que tocaram todos os poros da minha pele. Perdi-te no minuto em que abri a porta e deixei que ele entrasse, sorrateiro, para virar do avesso o meu mundo demasiado certo, demasiado previsível, demasiado cinzento. Perdi-me no momento em que me julguei capaz de ignorar fronteiras e desalinhar planetas, na promessa daquelas horas de calor absurdo. Eu nunca fui de ninguém. E as lágrimas que agora expulso não são por ti nem por nós. São por mim, pelo tempo que demorei a descobrir-me, pelo tempo que demorei a perceber que aquelas mãos geladas, aquele olhar profundo, aquela voz sublime não são capazes de preencher nada que me falte ser. Perdi-me de mim e sei que neste quarto bafiento, neste hotel ignorado, não vou encontrar senão fantasmas.

Texto vencedor por Sandra Freitas


Penélope. Chamava-se Penélope.
Era jovem, bonita e sonhadora. Mas não era feliz. Ansiava por sair da sua aldeia e viver todas as peripécias que lia nos romances que comprava na única tabacaria que existia naquele lugar pacato, rural e escondido das confusões do restante mundo.
Aos domingos à tarde, Penélope gostava de ir até à estação de comboios, sozinha e envergando o seu vestido domingueiro, a sua mala de pele castanha, os seus sapatos de tacão alto e o seu leque de senhorinha. Ficava por ali, horas infinitas, a sonhar, a imaginar que ia viajar ou que retornava de uma viagem. Inventava mil histórias para si e, muitas vezes, para as poucas pessoas que via passar. E sonhava com o amor…
Já ninguém dava importância a Penélope, sentada no seu usual banco, perdida nos seus pensamentos. Era de boas famílias, bonita, tranquila, simpática e educada. E se era assim que se sentia feliz, então porque não deixá-la envolta no seu mundo?
Dizem que, numa dessas tardes de domingo, um desconhecido parou depois de reparar nela. E que se apaixonou perdidamente pelo rosto calmo e sorridente de quem espera algo. Falou-lhe. Tornaram-se amigos, depois namorados. E, dali para a frente, aos domingos à tarde, Penélope aguardava finalmente alguém que era real, enquanto abanava o seu leque com uma expressão de felicidade no olhar.
Um dia, ele não veio. E domingo seguinte também não. E no seguinte também não. Penélope definhou  mas não desistiu daquele amor. Acreditava que ele voltaria para ela. E os seus olhos brilhavam sempre que um comboio parava na estação, aos domingos à tarde.
Os anos passaram…
Diz o povo que, numa tarde de primavera, o desconhecido amado regressou à aldeia. E encontrou-a sentada no mesmo banco de madeira verde, com a roupa de domingo, a mesma mala de pele castanha, os mesmos sapatos altos e o mesmo leque que ainda abanava graciosamente. Chamou-a mas ela não olhou, parecendo não o reconhecer. Sentou-se então ao lado dela e abraçou-a com os olhos lacrimejantes. Cheirou-lhe o cabelo agora esbranquiçado e observou-lhe o rosto enrugado e pequeno. Foi então que ela abriu um sorriso vagaroso mas feliz. Deixou cair o leque e pegando-lhe no rosto também marcado pelo tempo, murmurou:
- Meu amor! Estava à tua espera.
I COE - I Desafio

Texto vencedor por Miranda Lopes

Estava sentado no cadeirão do escritório onde se tinha refugiado para fumar um cigarro à beira da janela aberta de par em par. O jantar tinha corrido bem, a sua mulher era a perfeita anfitriã e tinha preparado quase tudo de véspera. O possante peru assado era o rei da mesa, ainda que a abundância à sua volta não lhe ficasse atrás. O sogro tinha feito as honras e trinchado o animal com mestria. Até a sogra parecia ter controlado o habitual azedume e sorria enquanto enchia o prato de iguarias preparadas pela filha, reconhecendo que em matéria culinária ela a tinha amplamente superado.
Nos olhos dela via o orgulho decorrente duma tarefa conseguida. Com a sua luz cobria o miúdo, os pais, e chegava até ele que se esforçava por devolver o olhar nas condições que ela lhe pedia. Sem dúvida tinha sido uma mulher perfeita, dedicada, carinhosa, atenta. Não tinha nada a apontar a essa mulher que tinha deixado curso e carreira de lado para criarem juntos a família que todos esperavam dele, filho primogénito e fiel depositário duma genética feita de homens trabalhadores e honestos, tal como o pai e o avô. Nesta noite de Natal sabia o quanto lhe queria transmitir com aquele olhar de devoção extrema, aliás ela própria lhe sussurrou ao ouvido ao passar-lhe a flute de champanhe para o tradicional brinde “a nós, para sempre!”
Aproveitou um momento de distracção enquanto o miúdo se deliciava com os presentes em demasia para subir até ao escritório. Olhou em volta para a organização e limpeza irrepreensíveis, pegou nas molduras que ali estavam, dos dois no dia do casamento, os três no dia do nascimento do filho, e novamente os três nas últimas férias que tinham passado na casa perfeita da família perfeita da sua mulher.
De repente lembrou-se do António, seu melhor amigo de infância. Recordou essa outra noite de Natal em que soube que tinha sido encontrado enforcado no seu quarto, onde tinham passado a tarde deitados na cama, nus, agarrados um ao outro como duas metades do mesmo destino. Lembrou-se do seu cheiro, daqueles olhos doces e daquele sorriso de menino que lhe provocava uma comoção e um desequilíbrio tal como sentia agora. Apercebeu-se que tinha subido para o beiral da janela. Olhou para a noite feita manto de estrelas cadentes e deixou-se levar no embalo das memórias desse outro Natal perfeito.

Regulamento

1. Instalação e finalidade
1.1. Especialistas da área educativa licenciadas em Pedagogia pela Universidade de Coimbra, escrevinhadoras viciadas | bloggers e leitoras compulsivas, de forma a estimular o gosto pela escrita, decidiram criar e lançar o Concurso Online de Escrita.
1.2. O Concurso Online de Escrita será constituído por cinco (5) desafios, ao longo de cinco (5) semanas.
1.2.1. Será apresentado um desafio por semana.
2. Modo de funcionamento
2.1. Todas as Quartas-feiras será enviado, para todos os concorrentes via e-mail, o desafio.
2.2. Terão até à Terça-feira seguinte (às 23:59h) para escrever o texto que lhes é pedido e para o enviarem para o seguinte endereço: c.escrita.online@gmail.com;
2.3. O júri pontuará cada um dos textos de zero (0) a vinte (20) valores, de acordo com critérios de qualidade, criatividade, organização e originalidade.
2.4. As pontuações serão, semanalmente, enviadas, via e-mail, para todos os concorrentes.
2.5. O vencedor do Concurso Online de Escrita será o concorrente que somar, no final das cinco (5) semanas, mais pontos.
3. Inscrição
3.1. Podem participar no Concurso Online de Escrita todos aqueles que estejam dispostos a escrever em língua portuguesa, maiores de dezoito (18) anos, independentemente da sua nacionalidade ou do país onde se encontrem.
3.2. As inscrições são individuais.
3.3. O custo de inscrição é de dez (10) "livros" para todo o concurso.
3.4. Para formalizar a inscrição, bastará enviar um e-mail a expressar esse desejo para o endereço electrónico c.escrita.online@gmail.com – ao qual se responderá com brevidade.
3.4.1. Para a inscrição ficar total e devidamente efectivada será, posteriormente ao e-mail mencionado em 3.4., enviada a Ficha de Inscrição que deve ser preenchida correctamente.
3.4.1.1. Deve ainda efectuar o pagamento da inscrição - dez (10) "livros" - e enviar comprovativo para o endereço já citado: c.escrita.online@gmail.com.
3.5. O número de participantes é limitado.
3.6. A inscrição é feita por ordem de chegada.
4. Natureza dos prémios
4.1. Todas as semanas, se assim for dada permissão pelo autor, será divulgado no blogue do concurso - http.//escrita-online.blogspot.com - o texto vencedor de cada desafio.
4.2. O Prémio Final é de cinquenta (50) "livros".
5. Constituição do Júri
5.1. O Júri será composto por 1. uma especialista da área educativa licenciada em Pedagogia pela Universidade de Coimbra - Organização do COE, 2. uma blogger convidada - vencedora das primeiras edições e 3. uma leitora compulsiva.
6. Casos omissos e dúvidas de interpretação
6.1. Os casos omissos e as dúvidas de interpretação serão resolvidos pela Organização.
7. Disposições Finais
7.1. Todos os concorrentes inscritos aceitam este Regulamento.
7.2. Todas as informações relativas ao Concurso Online de Escrita serão divulgadas através do blogue http://escrita-online.blogspot.com e tudo o que seja de total interesse dos concorrentes será enviado para o mail de contacto cedido na Ficha de Inscrição.
7.3. A Organização reserva-se o direito de anular o concurso no caso de não existir número suficiente de inscritos. Tal implicará a devolução do custo da inscrição - dez (10) "livros" - aos participantes.