Mas regressemos a Janeiro
do ano anterior.
Eu tinha 26 anos a arder
no peito e acabara de abraçar uma carreira promissora e nova, com sede no Largo
do Rato. Dessa vida, era só minha a vontade soberana, e os dias corriam doces,
ao sabor dos seus ditames. Por isso era uma casa de portadas e paredes brancas,
com gatos dentro e amigos para jantar, com a promessa do rio no horizonte. Uma
villa de flores, varandins e azulejos, ali no coração da Graça.
(Lisboa-meu-amor há-de sempre ser ali, mesmo que eu não torne a regressar-lhe.)
Havia a impetuosidade do
amor recente, mas com dedicação de amor
antigo. Havia o segmento Príncipe Real-Cais do Sodré, todos os dias, à saída
do trabalho. Havia cerveja, cinema e fado. Havia os meus lugares e a cidade a
ser-me casa.
E nada fazia sentido.
A decisão irrompeu de
mim, como a luz costumava fazer, feroz e evidente, a cada fresta da casa da
Graça. Na verdade nem foi decisão, surgiu como
um facto. Não há planta nem pessoa que
floresça em clima agreste.
Parei logo ali na biblioteca
pública do Carmo e, àquele computador obsoleto, exigi respostas, qual oráculo.
Amesterdão começou assim, urgente, numa sala que cheirava a bafio e velhos.
Depois, mais sossegada, fui observar os meus propósitos, defronte do miradouro,
em São Pedro de Alcântara.
Disse as pessoas o que
queriam ouvir, a poupar-me a qualquer desgaste que ao empreendimento não fosse
indispensável. Que já tinha trabalho, sim, insinuando uma qualquer cunha,
remota e apaziguadora. Escusei-me a ansiedades emprestadas, que não sou
repositório de medos alheios. Em Agosto comprei um bilhete sem regresso. E
comecei a despedir-me.
Do facto-decisão à
partida, passou exactamente um ano. Eu achei que a pressa de mundo não havia de impedir-me de tomar o meu tempo. E
assim dirigi-me a cada lugar, a cada pessoa. A família passaria a ser
recordação e saudade, por isso passei os últimos meses na terra-natal, a fazer
o divórcio, voluntário e amigável, que me garantisse a paz futura.
Parti de mãos e peito
abertos, em Janeiro de 2012, e com uma alegria a rasgar-me por dentro.
Estava mortinha por chegar a casa.