III COE - III Desafio

Texto vencedor por Marta:

Foste tu que pediste para te matar na Primavera. Enquanto ainda há flores, amor. Tu a pedires-me para eu te matar e a chamar-me amor ao mesmo tempo, na mesma frase, com nano-segundos de intervalo entre uma palavra e outra, fez-me acreditar que matar só podia ser uma coisa boa, só podia. O amor é bom e tu chamaste-me amor. E a partir daí eu sempre soube que te ia matar na Primavera, enquanto ainda há flores, amor. Nunca me questionei por que raio querias tu morrer, nunca o fiz, e se calhar nunca te amei como tu me amaste. Porque se eu te amasse, sei agora, ter-te-ia feito desistir da ideia. Passaram várias Primaveras antes de eu te matar. E vários Invernos, Outonos e Verões. Passaram-se anos sem te ver. Eu para um lado e tu para o outro. Tu casado, três filhos, dois deles varões como sempre sonhaste; eu e vinte e um gatos juntos na mesma casa. Voltámos a rever-nos quando há muito tínhamos esquecido o pedido e a promessa. Estavas igual, sentado e sereno de jornal no colo no consultório do dermatologista onde eu tinha ido por causa de uma mancha persistente e tu não sei sequer porquê. Olhaste para mim como quem questiona a capacidade alheia para cumprir promessas e eu olhei para ti com a certeza de que a ia finalmente cumprir. Saímos juntos do edifício acinzentado e quando te beijei morreste-me nos lábios. De ataque cardíaco, ouvi dizer no funeral, sem que ninguém tenha associado a morte à alergia ao mentol que o médico descobriu nas análises quando tinhas três anos. Tinha o batom na mala, tive sempre, estes anos todos, para lábios gretados e para mortes prometidas. Matei-te na Primavera, faltavam dois dias para o Verão, e matei saudades dos teus lábios enrugados pelos quarenta anos que passaram. Matei-te enquanto há flores e foi a única vez na vida que te amei. Deixei-te no altar porque nunca te conseguiria amar. Devia-to ter dito antes de te matar mas provavelmente saboreaste a verdade nos segundos em que sentiste os meus lábios. Por isso morreste, acho eu, nunca saberei se foi o mentol afinal. Talvez não tenhas aguentado a verdade que nunca te contei. Matei-te na Primavera amor, enquanto ainda há flores. E descobri que sou capaz de cumprir promessas atrasadas. Talvez seja afinal capaz de tudo.