IV COE - II Desafio

Texto vencedor por Storm Of Life:

Oh não, lá vem aquela luz, e eu sei, embora saiba por pouco tempo, tudo o que sucede daqui em diante. Não, não quero sair! Que ferros são esses que me puxam e aleijam!?!? Estou tão bem aqui quentinho.
O mundo é cruel! E quem te diz é a palmada que se avizinha assim que me tirares daqui.
Não, não queeeerrrr.... pronto! Já sabia que não me iam deixar ficar!
Aiiii!!! Eu chorava sozinho, pá!!! Era preciso mesmo bater? Que raio de forma de começar a viver!
Passam a vida a passar ensinamentos que na prática ninguém usa. Oh, eu também já fui assim! Apregoei anos a fio palavras cultas que transmitiam paz e serenidade mas na verdade era cruel por dentro, a ironia e o sarcasmo estavam sempre presente. Mas os outros não viam, nunca vêem!! São demasiado egoístas para nos olhar de verdade, por dentro! Só olham para o pacote exterior! Como se ele não servisse para apenas nos transportar.
Bem, vai começar tudo de novo. Aprender a sugar para sobreviver, a andar, a falar, a escrever. Aprender a cair e a levantar-me. Levar uns socos da vida. O primeiro beijo, o primeiro amor, o primeiro desgosto. A primeira vez que se deseja que a vida termine, quando ela não passa de um circulo vicioso, que nos deixa tontos e nos faz passar por tudo uma e outra vez, e mais outra e outra...!
Depois entra tudo numa rotina, conclusão de estudos, trabalho, casamento, filhos, mesmo que a ordem não seja invariavelmente esta, os acontecimentos são.
Ainda não descobriram que a morte não é mais do que um renascimento...
Hummm... que colinho macio o de uma mãe, quase que diria que por isto vale a pena renascer.
E o que é isto que se sente dentro de nós que nos apaga a memória mas nos enche a alma? Ahhh... O amor... ele vai me fazer esquecer de todas as minhas vidas passadas e viver esta vida em pleno, tal como a primeira vez.
Onde é que eu estava mesmo antes de nascer, mãe? E quando for velhinho, vou para o céu? É verdade que antes de morrer vemos uma luz, mãe? E se eu não quiser seguir essa luz, mãe? Ela puxa-me?



Texto vencedor por AnaLu:

Morreste-me em Agosto, no primeiro dia, quando a vida estava mesmo a começar. Não chegaste sequer a saber. Eu havia guardado tudo para mim como um fogo do qual só se pudesse ter notícia quando extinto. E por isso tu foste sem saber.
Lisboa era intenção e promessa. Iamos viver juntas outra vez e criar, finalmente, o nosso espectáculo de teatro. Disseste-me, para a semana ligo-te e planeamos tudo.
Para a semana ligo-te e planeamos tudo.
Durante os quinze dias em que estiveste em coma eu encontrei trabalho num dos meus sítios preferidos da cidade. E esperei, pacientemente, para te contar. Disse à tua mãe que não queria ver-te, que tinha muito tempo, quando acordasses.
Quando acordasses.
Por isso esperei cá fora, esperámos cá fora, de lábios apertados e mãos em novelo. Entrava um de cada vez por quinze minutos com limite de três visitas por dia. Um-quinze-três. Eu não ia roubar-lhes esse espaço. Um-quinze-três. E estive sempre calma porque tu ias regressar. Dêem-lhe tempo, dizia. Ela precisa de tempo.
Recordo-me que nesse dia usava, por casualidade, um xaile preto. E estava numa relojoaria a pôr uma pilha nova num relógio de infância. Era um Flik Flak cor-de-rosa. Faltava meia hora para o meu primeiro dia de trabalho. E então recebi o telefonema.
Está tudo bem, menina?
Estava abafado e eu vim para o meio da rua. Tentei ligar-lhe mas acho que ele não atendeu, não sei. Então fiquei à espera. Era estranho que passassem carros e pessoas e que houvesse prédios e um céu azul. E vi, no meu relógio velho com pilha nova, como numa ampulheta, os minutos a passar, até que a minha nova vida começasse.
No primeiro dia depois de tudo eu fiquei sem nada. E tu não podias saber. Não podias saber da gaiola aberta. Não podias saber do silêncio dele como coisa que se cerra nem da minha desistência. Nunca pudeste saber da barba como um rio e de tudo o que se seguiu depois. Lisboa, meu amor. Lisboa.
Ele reapareceu-me naquele domingo e segurou-me com força o tempo todo. Estava toda a gente lá. Eu levava o xaile preto e calças novas - fui ao teu funeral elegante como uma garça.
Continuei, paciente, a espera, desde então. Já passaram três anos e talvez passem muitos mais. Tenhas tu a forma que tiveres, reconhecer-te-ei quando conseguir encontrar-te.
E a minha-nossa vida poderá, enfim, recomeçar.


Texto vencedor por Richard Teixeira:

Naquela manhã normalíssima de Outono, num apartamento comum, ouviu-se um grito estridente que atravessou a manhã.
- Aiiiii, que dor de cabeça - disse só para mim enquanto me olhava ao espelho do wc.
- Aiiii, porra que se passa - gritei alto. Senti-me logo a tombar, fletindo pelos joelhos, com as mãos suadas e apertando fortemente as têmporas grisalhas...
Rodopiei como uma folha de Outono e contorci-me numa dor agonizante, pensei de imediato que ia morrer.
Depois foi como se me pusessem um pano de seda branco à frente dos olhos, via a vida em slow motion e sentia um forte zunido nos ouvidos, sentia sangue na boca, na guelra, sentia uma espada cravada no crânio, profunda.
- João, João! Que tens? Ai meu deus - disse Maria, minha mulher.
Naquela manhã normalíssima, nos cuidados intensivos do Hospital.
PI...PI...PI...
- Sr.º Doutor penso que o conseguimos salvar! Os sinais vitais estão estáveis. A operação correu bem - disse Teresa, a enfermeira.
- Sr.ª Enfermeira, não sei se alguma vez ele será o mesmo - disse Jorge, o médico.
PI...PI...PI...
- Epá estou tão cansado! Que se passa comigo? Tenho os olhos tão pesados que não os consigo abrir - disse eu.
- Não me consigo mexer, merda! - Que é isto que tenho enfiado no nariz? - Que PI PI PI  irritante é este? Porra, onde estou? Quem está ai?? Que cama é esta?
PI...PI...PI...
- Sabe, o seu marido teve uma aneurisma muito forte - disse Teresa, a enfermeira, ouvi baixinho entre o chorar triste de Maria.
- Ele recupera? Diga-me que sim, por favor - disse Maria, minha mulher.
- Não sabemos sinceramente - disse Teresa, a enfermeira.
(alguns dias depois)
PI...PI...PI
- Maria és tu? Amor, ouve! Estou aqui, estou bem, estou-te a ouvir, a sentir tudo, estou vivo! Vem aqui, aproxima-te, quero sentir o teu cheiro, os teus cabelos, a tua pele novamente...
- Maria vem aqui! Beija-me agora, abraça-me! Vou-te fazer uma mulher à modos, vem, vamos viajar sós por aí, vem, vou trabalhar menos, nem te deixo sozinha pelos cantos, vem vá, se me deres um beijo talvez acorde quem sabe... quero nascer outra vez...
- Maria por favor não deixes desligar a máquina que me mantém vivo! Sou eu o teu Jorginho. Vem, quero nascer, quero renascer o nosso amor. Vem, prometo ser teu amigo, fiel!
- Vou fazer-te feliz novamente...
PIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPIPI