III COE - V Desafio
Texto vencedor por Marta:
Deixa-me
olhar para ti antes que eles venham. As televisões, os arqueólogos, os peritos
disto e daquilo. Deixa-me ver-te bem, agora que estamos os dois sozinhos, como
nunca antes nos tinham dado oportunidade de estar. É sempre assim. Eu
descubro-vos e eles roubam-vos de mim no minuto em que eu me deito para uma
merecida sesta depois de anos de procura. Pudesse eu e levava-te para casa. Pudesse
eu e deitava-te na cama, fazia-te sentir mais do que um amontoado de ossos que
lembram passados que eu não vi nem vivi. Não me interessa quantos anos viveste
antes de mim, ou há quantos morreste sem que eu tenha tido oportunidade de te
dar a mão. Não interessa o tempo que nos roubaram – roubam sempre – porque tu
existes por muito que eles olhem para ti e achem que o teu lugar é um museu
desabrigado de afectos. Desta vez não vou deixar. Eles já vêm a caminho, eu
sei. Por isso não vamos esperar por eles. Desta vez não te deixo e, de certa
forma, ao levar-te comigo levo também todos aqueles e aquelas que abandonei sem
querer ao longo deste caminho que escolhi, ou me escolheu, sei lá eu. Não te
assustes, peço-te, com a viagem. Estamos longe do sítio para onde te quero
levar mas um dia chegaremos. Ouço barulho ao fundo, são eles, eu sinto. Temos
de nos apressar antes que nos descubram aqui, ao lado um do outro, como se
polidos da mesma areia de onde te desenterrei, estátuas perdidas numa terra
longínqua sem saber o que vem a seguir. Os solavancos que agora sentes são
normais, o terreno é instável e a carrinha não está preparada para alguém como
tu, mas vão passar, passam sempre. Não te vou abandonar, não penses. Vou saber
a quem pertenceste, de onde vinhas e para onde ias afinal quando um qualquer
obstáculo te quedou onde te encontrei. Por muitas voltas que a terra tenha dado
em torno do Sol desde o teu último suspiro. E depois vais descansar,
finalmente, num sítio à tua altura.
Um dia
vais ser tu, avô. Um dia vou-te descobrir. E vou escrever numa lápide à tua
medida que morreste numa guerra que não escolheste. E de onde só veio uma carta
a dizer ‘desaparecido’, nada mais. Um dia vais descansar avô, prometo-te. Nem
que para isso eu tenha de morrer também.